domingo, 28 de julho de 2013

‘O dilmês aconchegante do adeus a Dominguinhos é o contraponto lírico ao dilmês delirante do Mineirão fantasma’


CELSO ARNALDO ARAÚJO
Dou-lhe o benefício da dúvida. Não foi propriamente uma mentira, mas uma licença poética. Ou cinematográfica. Fã confessa do bonitão Kevin Costner, talvez tenha se inspirado no filme “Campo dos Sonhos” para imaginar que, “ainda criança”, assistia a jogos do Atlético no Mineirão, inaugurado quando ela já estava às portas dos 18 anos e com a cabeça em outro lugar que não uma arquibancada de estádio de futebol ─ local, de resto, que meninas absolutamente não frequentavam nos anos 60.
Hoje, aos 65 anos, a cabeça continua em outro lugar ─ embora não se saiba onde. Quando fala sobre qualquer assunto, futebol naturalmente incluído, Dilma dá a nítida impressão de não saber nada de coisa alguma. Bem: nítida, no caso, é só força de expressão.
Mas por que Dilma precisa fingir ser torcedora símbolo do Galo desde criancinha quando faria poesia ficando calada? Porque o pessoal do Ministério da Comunicação Social e os marqueteiros do Planalto fazem um esforço sobre-humano para fazê-la parecer humana, sensível e antenada com tudo e todos. Como isso é impossível ao nível da oralidade, por sua irremediável incapacidade de articular um único pensamento inteligente sobre qualquer assunto, fazem-na assinar notinhas presidenciais que o Planalto dispara à tolerância da mídia, dentro da lógica meridiana de que mentiras sinceras interessam e impressionam: feitos e vitórias merecem mensagens de congratulação; perdas e mortes, de pesar. Simples assim ─ como se o conteúdo dessas mensagens burorráticas de Dilma correspondesse a sentimentos e conhecimentos genuínos.
E a vida dessa Dilma não é fácil. Na véspera da conquista do Atlético, ela precisou dar conta de dois falecimentos ilustres: Djalma Santos e Dominguinhos. Sobre ambos, em vida, Dilma não sabia mais do que sabem pessoas comuns. O primeiro foi jogador de futebol. O segundo, sanfoneiro. Dados os antecedentes, nem se imagine a presidente improvisando detalhes biográficos dessas duas personalidades desaparecidas no mesmo dia. Falando sobre Pelé, que é Pelé, já é um desastre. Em entrevista durante o marco dos mil dias para a Copa de 2014, no próprio Mineirão, ao lado do Rei, ela disparou:
“E dizer que nós estamos aqui, nos mil dias, com um especialista em mil, especialista pelos seus 1.283 gols. E nós todos aqui vamos convir que um especialista em mil dá muito orgulho pro nosso país”.
Traduzindo: a cada mil pessoas, uma é Pelé. Sobre Djalma… Bem, uma nota oficial é sempre mais segura. Provavelmente não é Dilma quem escreve as notas que assina. Ela, é claro, dá seus pitacos ─ deve ter sido o caso do “Mineirão desde criancinha”. Mas seus redatores invariavelmente capricham na banalidade, com informações redundantes ou desnecessárias, na intenção de transmitir familiaridade presidencial com a biografia do vencedor ou do falecido ─ sempre acrescidas de uma tirada que soe mais criativa. E, justiça seja feita, quase sempre soa como Dilma escrita.
O começo da nota de Dilma sobre o maior lateral-direito do futebol brasileiro poderia iniciar qualquer obituário que comportasse a imortalidade de um clichê, bastando trocar a área de atuação do falecido:
“O futebol está de luto”.
E, depois da afirmação inédita de que Djalma era lateral e foi bicampeão do mundo, vem o toque de classe. Segundo Dilma, ele “nunca foi expulso mesmo tendo de marcar os melhores jogadores de sua época”. Ou seja: nunca precisou marcar os piores. Craque é craque.
Ok, futebol não é o forte da presidente. Para quem se encantou com a finada caxirola, a música é. A nota sobre Dominguinhos poderia começar com “A música está de luto”. Mas não. Que tal “O Brasil perdeu ontem José Domingos de Moraes, o Dominguinhos, um talento natural que orgulha a música brasileira”? Intimidade com o pranteado é isso: revelar que Dominguinhos tinha um nome pelo qual ninguém o conhecia. E é bom saber que José Domingos de Moraes tinha talento natural e não de outro.
Prossegue o obituário presidencial: “Compositor, arranjador, alegria em pessoa, Dominguinhos foi ─ ao lado de Luiz Gonzaga ─ um preservador da arte da sanfona”. Dominguinhos, um preservador. Não é uma solução, mas pelo menos rima com compositor e arranjador.
E para os fãs que choram a alegria em pessoa de Dominguinhos ─ e é a eles que Dilma, ao fim da nota, destinará “minha solidariedade nessa hora de dor” ─ é preciso demonstrar que ela conhece os principais hits do artista: “Domingos deixa para cada brasileira, cada brasileira, músicas como De Volta pro AconchegoIsso Aqui tá Bom Demais e Eu Quero um Xodó“.
E então vem o toque especial, autoral, tipico das notas fúnebres do Planalto:
“Deixa na mala bastante saudade”.
Pode soar estranho para quem não conhecia Dominguinhos tão bem como Dilma. Mas tente lembrar dos primeiros versos de “De volta pro aconchego”.
“Estou de volta pro meu aconchego
Trazendo na mala bastante saudade”
Entendeu? Quem trouxe saudade na mala, a deixa quando parte. A isso se chama dilmês aconchegante ─ contraponto lírico ao dilmês delirante do Mineirão fantasma.

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